Uma diretriz nacional que obriga médicos de família a reavaliarem casos sem diagnóstico conclusivo a cada três consultas entrou em vigor no Reino Unido depois da morte da britânica Jessica Brady, de 27 anos. Conhecida como Jess Rule, a nova medida foi incorporada ao Serviço Nacional de Saúde (NHS) com o objetivo de evitar que pacientes com sintomas persistentes esperem meses para obter um encaminhamento adequado. Jessica faleceu em dezembro de 2020, três semanas após descobrir que sofria de um adenocarcinoma em estágio 4. O atraso no diagnóstico gerou uma mobilização pública que reuniu quase meio milhão de assinaturas e pressionou autoridades de saúde e parlamentares a revisar procedimentos de triagem.
Queda abrupta no estado de saúde
Segundo relatos da família, Jessica apresentava boa condição física antes da pandemia de Covid-19. No verão de 2020, contudo, passou a sentir perda de peso inexplicável, fadiga intensa, tosse constante, suores noturnos e inchaço significativo de linfonodos. Apesar da lista de sintomas, profissionais que a atenderam mencionaram a possibilidade de Covid longa e minimizaram a chance de câncer devido à idade da paciente.
Entre julho e novembro de 2020, Jessica procurou o consultório de medicina geral em que estava registrada em mais de vinte ocasiões. Nesse período, foi avaliada por seis médicos diferentes e realizou três atendimentos presenciais, além de várias consultas telefônicas, modelo de atendimento comum durante as restrições de circulação impostas pela pandemia. Nenhum dos profissionais solicitou exames especializados ou fez o encaminhamento para um oncologista.
A ausência de respostas levou a família a buscar o setor privado. Apenas então Jessica foi direcionada a um especialista, que confirmou o diagnóstico de adenocarcinoma avançado. Essa forma de tumor se desenvolve nas glândulas que revestem órgãos e pode atingir pulmões, estômago, pâncreas ou cólon. O prognóstico costuma depender do estágio em que a doença é detectada, sendo mais favorável quando há possibilidade de cirurgia ou início precoce de quimioterapia e radioterapia. No caso de Jessica, o avanço do câncer restringiu as alternativas terapêuticas.
Últimas semanas e mobilização familiar
A confirmação da doença ocorreu no início de novembro de 2020. Três semanas depois, pouco antes do Natal, Jessica morreu em um hospital. De acordo com a mãe, Andrea Brady, a filha demonstrou coragem e esperança até os momentos finais, mesmo enfrentando a progressão rápida do tumor.
Nos meses seguintes, Andrea decidiu transformar a perda em uma campanha por mudanças sistêmicas. O objetivo principal era evitar que outros jovens ou pacientes com quadro clínico atípico recebessem avaliação insuficiente. A mobilização contou com apoio de políticos, profissionais de saúde, organizações não governamentais e quase 500 mil cidadãos que assinaram uma petição eletrônica. O movimento resultou na inclusão da denominada three strikes and rethink approach (três consultas e reavaliar) como protocolo obrigatório nos serviços de atenção primária.
Detalhes da Jess Rule
A partir de agora, sempre que uma pessoa comparecer três vezes ao consultório de medicina geral com sintomas persistentes e não receber um diagnóstico conclusivo, o caso deve ser revisto de forma mais abrangente. O procedimento pode envolver solicitação de exames adicionais, segunda opinião ou encaminhamento a especialistas. A intenção é reduzir a probabilidade de que sinais precoces de doenças graves permaneçam ignorados.
Antes da padronização nacional, alguns consultórios adotavam diretrizes semelhantes em situações consideradas complexas. Entretanto, não havia obrigatoriedade. Com a publicação da regra, a prática se torna política pública para toda a rede do NHS, abrangendo pacientes de qualquer faixa etária ou histórico clínico.
Contexto da atenção primária durante a pandemia
O período em que Jessica buscou atendimento coincidiu com etapas críticas da pandemia de Covid-19. Em vários países, consultas presenciais foram substituídas por telefonemas ou videochamadas, estratégia adotada para reduzir a circulação de pessoas em ambientes médicos. Embora a transição tenha permitido manter o funcionamento dos serviços, também gerou desafios, principalmente para condições que exigem avaliação física ou exames específicos.
No caso de Jessica, parte das interações com os profissionais ocorreu por telefone. Mesmo assim, sua família registrou preocupação com o número de sintomas apresentados e a ausência de encaminhamento. Entre os entraves apontados posteriormente em inquéritos internos estão a sobrecarga de agendas, o medo de contágio que reduzia atendimentos presenciais e a probabilidade estatística baixa de câncer em pessoas na faixa dos 20 anos.
Repercussão entre profissionais de saúde
Organizações médicas do Reino Unido reconheceram que a introdução da Jess Rule representa um reforço à segurança do paciente. Especialistas em atenção primária destacam que a regra não pretende questionar a autonomia clínica, mas estabelece um limite operacional para garantir que quadros persistentes ganhem prioridade. Ao criar um marco formal, o NHS busca padronizar condutas e reduzir variações regionais.
A Associação de Medicina Geral informou que a diretriz virá acompanhada de treinamento adicional e recursos para apoiar médicos no processo de reavaliação. Entre as ferramentas previstas estão sistemas eletrônicos que emitem alertas quando um paciente retorna várias vezes sem diagnóstico definido, auxiliando na identificação de possíveis falhas de continuidade do cuidado.
Imagem: Lucas Rabello
Desigualdades no acesso e importância da idade
Dados do sistema britânico mostram que diagnósticos tardios de câncer afetam desproporcionalmente grupos mais jovens, minorias étnicas e populações de áreas socioeconomicamente desfavorecidas. Em pessoas abaixo dos 30 anos, a probabilidade de encontrar um tumor maligno é estatisticamente menor, o que pode levar profissionais a atribuir sintomas a causas benignas. Contudo, quando um caso de câncer se confirma nessa faixa etária, muitas vezes já se apresenta em estágio avançado.
Para especialistas em saúde pública, o reconhecimento de que pacientes “muito jovens” também podem desenvolver câncer é crucial para evitar atrasos. A nova regra pretende justamente combater vieses que influenciam decisões clínicas, exigindo postura proativa quando há reincidência de sintomas, mesmo em circunstâncias consideradas atípicas.
Pressões sobre o NHS e perspectivas futuras
O Serviço Nacional de Saúde vem enfrentando desafios ligados ao aumento da demanda, envelhecimento da população e restrições orçamentárias. A inclusão da Jess Rule implica reavaliação de fluxos de trabalho e possível crescimento no volume de encaminhamentos, com impacto sobre listas de espera. Para mitigar efeitos indesejados, o governo promete investimentos em diagnóstico precoce, como expansão de centros de escaneamento comunitário e melhoria na capacidade de exames laboratoriais.
A meta oficial é elevar a taxa de detecção de câncer em estágio inicial, quando as chances de sobrevida em cinco anos são significativamente maiores. Autoridades de saúde estimam que, ao reforçar a atenção primária, seja possível identificar cerca de 75% dos tumores nos estágios 1 ou 2 até 2028, meta alinhada com planos já anunciados de combate ao câncer.
Experiências semelhantes em outros países
Medidas que estabelecem pontos de verificação em consultas repetidas vêm sendo testadas em nações como Austrália e Canadá. Embora os sistemas de saúde apresentem diferenças estruturais, relatórios indicam redução nos tempos de diagnóstico para determinadas patologias quando políticas desse tipo são implementadas. Caso o modelo britânico demonstre eficácia, poderá servir de referência a sistemas públicos que buscam equilibrar custos e qualidade do cuidado.
Depoimentos e legado
Em declarações divulgadas após a aprovação da regra, Andrea Brady reafirmou que o compromisso da filha em ser ouvida inspirou o movimento. Ela lembrou que Jessica insistiu para que seus sintomas fossem levados a sério até o último momento. Segundo Andrea, a implementação da diretriz representa um tributo a todos os jovens que enfrentaram diagnósticos tardios.
Organizações de pacientes e entidades ligadas ao câncer avaliaram a medida como passo importante, mas ressaltaram a necessidade de monitoramento contínuo. Defensores do diagnóstico precoce querem assegurar que a regra seja aplicada de maneira uniforme e que os serviços recebam recursos adequados para cumprir os novos padrões.
Principais pontos da nova diretriz
- A Jess Rule determina reavaliação após três consultas sem diagnóstico conclusivo.
- A diretriz vale para todos os consultórios de medicina geral do NHS.
- Profissionais devem considerar exames adicionais ou encaminhamento a especialistas.
- Objetivo é reduzir atrasos em doenças graves, como câncer, independentemente da idade do paciente.
- A medida surgiu após campanha pública motivada pela morte de Jessica Brady.
Impacto esperado nos indicadores de saúde
Estudos internos do NHS estimam que a regra possa diminuir em até 10% os diagnósticos de câncer em estágio avançado nos próximos anos. A projeção baseia-se em modelos que consideram a frequência de consultas repetidas por sintomas não esclarecidos. Caso se confirme, o efeito poderá se traduzir em aumento de sobrevida e redução de custos com tratamentos complexos, já que terapias iniciadas precocemente costumam ser menos agressivas e mais eficazes.
Conclusão
A adoção da Jess Rule marca uma mudança significativa na prática da atenção primária britânica. Ao exigir reavaliações formais após tentativas fracassadas de diagnóstico, o NHS busca enfrentar lacunas que podem resultar em desfechos fatais. A história de Jessica Brady, que procurou assistência repetidas vezes sem obter encaminhamento adequado, evidenciou falhas no sistema e mobilizou a sociedade para pressionar por soluções. Com a nova diretriz agora em vigor, profissionais de saúde, autoridades e pacientes aguardam os próximos resultados para verificar se a promessa de diagnósticos mais rápidos se concretizará.
