Katmandu – O Nepal enfrenta sua maior crise política e social em anos após a decisão do governo de bloquear vinte e seis plataformas de redes sociais, entre elas Facebook, Instagram e X. A medida, anunciada como provisória, desencadeou protestos conduzidos principalmente por jovens e resultou em incêndios, confrontos violentos e renúncias no alto escalão do Executivo. Em um dos episódios mais dramáticos, manifestantes atearam fogo a partes do complexo do Parlamento em Katmandu, ampliando a instabilidade que já havia tomado conta das ruas da capital e de outras cidades do país.
Bloqueio digital acende insatisfação popular
O bloqueio às redes sociais foi interpretado pela população mais jovem como uma afronta direta à liberdade de expressão. Estudantes e recém-formados, muitos deles pertencentes à chamada Geração Z, denunciaram o ato como uma tentativa de silenciar críticas ao governo e ocultar denúncias de corrupção. O protesto inicial, convocado para as praças de Katmandu, rapidamente se espalhou para centros urbanos como Pokhara e Biratnagar, reunindo milhares de participantes determinados a manter a comunicação apesar das restrições impostas.
Segundo estatísticas locais, o Nepal possui cerca de quatorze milhões de jovens entre quinze e trinta anos. Esse contingente, que vem acompanhando denúncias de corrupção desde o início do ano, reagiu de forma organizada: utilizaram redes privadas virtuais e aplicativos descentralizados para driblar o bloqueio, divulgar pontos de encontro e compartilhar imagens dos atos em tempo real. Essa coordenação online contribuiu para que o movimento ganhasse amplitude em poucos dias, transformando manifestações pacíficas em uma revolta de grande escala.
Confrontos e vítimas
A resposta das forças de segurança escalonou rapidamente. Em diversos momentos, a polícia utilizou gás lacrimogêneo para dispersar os manifestantes, que erguiam faixas contrárias ao governo e gritavam slogans exigindo a revogação imediata do bloqueio. O dia mais letal ocorreu quando policiais abriram fogo contra a multidão nas imediações da Praça Durbar, no centro de Katmandu. Relatórios médicos apontam pelo menos dezenove mortes somente nessa data, além de centenas de feridos.
De acordo com o Centro Nacional de Trauma da capital, mais de trezentas pessoas foram atendidas desde o início dos confrontos. O médico Badri Risa afirmou que vários pacientes chegaram com ferimentos graves, inclusive perfurações de bala na cabeça e no tórax, indicando o uso de munição letal. Testemunhas relataram que, mesmo após a dispersão, unidades de segurança seguiram perseguindo pequenos grupos em vielas próximas, onde ocorreram novas detenções.
Incêndios atingem símbolos do poder
Com a escalada da tensão, manifestantes passaram a mirar prédios associados à elite política. Em Balkot, a residência particular do então primeiro-ministro Khadga Prasad Sharma Oli foi alvo de um incêndio de grandes proporções. Imagens divulgadas nas redes mostraram chamas consumindo telhados e colunas de fumaça escura elevando-se acima das construções. Árvores que circundavam a propriedade foram derrubadas para dificultar a aproximação de veículos das forças de segurança.
Na mesma noite, parte do complexo do Parlamento em Katmandu também pegou fogo. Os focos se espalharam por diferentes alas do edifício, danificando salas de sessão e escritórios administrativos. Equipes de bombeiros trabalharam por horas para conter as chamas, que ameaçavam atingir documentos e arquivos legislativos. Autoridades não divulgaram estimativa preliminar de prejuízos, mas admitiram perdas significativas em equipamentos e na estrutura física.
Propriedades de líderes políticos sob ataque
A onda de vandalismo não se restringiu aos locais ligados ao primeiro-ministro. Residências e escritórios de outros representantes de destaque foram atacados em diferentes regiões do país. Entre eles estão a casa de Sher Bahadur Deuba, ex-chefe de governo e figura central do Congresso Nepalês, e a residência oficial do presidente Ram Chandra Poudel. O ministro do Interior, Ramesh Lekhak, e o líder maoísta Pushpa Kamal Dahal também tiveram propriedades danificadas.
Além das residências, escritórios partidários tornaram-se alvos recorrentes. Sedes do Partido Comunista do Nepal (Marxista-Leninista Unificado), legenda à qual Oli é historicamente ligado, foram depredadas em Katmandu e em Lumbini. A escola privada gerida por Arzu Deuba Rana, esposa de Sher Bahadur Deuba e ministra das Relações Exteriores, foi incendiada por um grupo que protestava contra o que chamou de “benefícios desproporcionais” concedidos a familiares de políticos.
Pedras fundamentais da crise: corrupção e nepotismo
Embora o bloqueio às redes sociais tenha sido o estopim visível, a mobilização reúne queixas que se acumulam há anos. Os manifestantes apontam corrupção sistêmica, favorecimento político e nepotismo como barreiras ao desenvolvimento econômico. Estudantes afirmam enxergar poucas oportunidades de trabalho e reclamam que recursos públicos não são aplicados em educação, saúde ou infraestrutura básica.
Bishnu Thapa Chetri, universitário de vinte e três anos que participou de marchas na capital, sintetizou esse sentimento ao dizer que “não há razão para ficar” se a corrupção não for enfrentada. Ele e colegas pedem auditorias independentes em contratos governamentais, punição a agentes públicos envolvidos em desvios e a adoção de mecanismos transparentes de contratação. A pauta ganhou tração entre trabalhadores de tecnologia, professores e jovens empreendedores, criando uma aliança inédita entre segmentos tradicionalmente distantes.
Renúncias no governo
Em meio ao agravamento da crise, Khadga Prasad Sharma Oli anunciou renúncia imediata ao cargo de primeiro-ministro. A decisão foi comunicada em pronunciamento breve, no qual o líder não comentou a repressão policial nem detalhou motivos específicos. Horas depois, o ministro do Interior, Ramesh Lekhak, seguiu o mesmo caminho, acompanhado por outros três integrantes do gabinete que se declararam contrários ao uso de força letal contra civis.
Apesar das renúncias, a linha de sucessão ainda é incerta. O Parlamento, parcialmente danificado pelo incêndio, tem sessão suspensa por tempo indeterminado. Analistas políticos apontam que a fragmentação entre partidos dificilmente permitirá a rápida escolha de um novo chefe de governo, abrindo espaço para negociações que podem se estender por semanas. Enquanto isso, uma administração interina é formada por vice-ministros remanescentes, responsáveis pelo dia a dia da máquina pública.
Suspensão do bloqueio não freia mobilização
Na tentativa de arrefecer os protestos, a administração interina anunciou a revogação do bloqueio às redes sociais. A medida, no entanto, não surtiu o efeito esperado. Manifestantes afirmam que a insatisfação extrapolou a questão digital e agora abrange a exigência de punição aos responsáveis pelas mortes, além de reformas políticas mais amplas.
Em comunicado lido por porta-vozes do movimento em um protesto na Praça Maitighar Mandala, jovens exigiram a criação de uma comissão independente para investigar a violência estatal. Também pediram garantias de que novas plataformas não serão proibidas e solicitaram a convocação de eleições antecipadas. Segundo organizadores, “não se trata apenas de poder voltar a usar o celular, e sim de resgatar a confiança no Estado”.

Imagem: Lucas Rabello
Toque de recolher e escolas fechadas
Para conter a agitação, a polícia impôs toque de recolher por tempo indeterminado em Katmandu. Barreiras foram erguidas nas principais avenidas, e checkpoints verificam documentos de motoristas e pedestres. Escolas públicas e privadas suspenderam aulas para evitar deslocamentos em regiões conflagradas. Mesmo assim, grupos de manifestantes desafiaram as restrições, marchando em bairros vizinhos ao centro administrativo.
Em diversos pontos da capital, viaturas utilizaram alto-falantes para advertir sobre a proibição de aglomerações. Slogans como “Castiguem os assassinos do governo” e “Parem de matar crianças” eram entoados enquanto policiais disparavam bombas de gás lacrimogêneo. A persistência desses atos indica que as medidas de controle não conseguiram desmobilizar totalmente os protestos, que já duram semanas e comprometem o funcionamento de serviços públicos.
Impactos econômicos e sociais
A longa crise política tem gerado impacto significativo na economia nepalense. Pequenos comerciantes relatam queda nas vendas, sobretudo nos setores de turismo e alimentação. Hotéis em Katmandu registram cancelamento de reservas, enquanto agências de viagens suspendem pacotes voltados a trekkers que procuram trilhas nos Himalaias. Analistas financeiros temem que a violência afaste investidores estrangeiros em infraestrutura e energia, áreas vitais para o crescimento do país.
No âmbito social, organizações de direitos humanos expressam preocupação com a escalada de feridos e com o acesso limitado a serviços de saúde em meio ao toque de recolher. Hospitais que já enfrentavam dificuldades de recursos precisam agora lidar com aumento de demanda emergencial. Além disso, pais reclamam do fechamento prolongado de escolas, o que compromete o calendário acadêmico e agrava disparidades de aprendizado entre estudantes de zonas urbanas e rurais.
Papel das redes na organização dos protestos
Apesar do bloqueio inicial, ativistas conseguiram manter fluxo de informações por meio de ferramentas como VPNs e plataformas de mensagens criptografadas. Técnicos de informática ofereceram tutoriais sobre como configurar redes alternativas, enquanto influenciadores locais transmitiam ao vivo cenas dos confrontos. Essa mobilização virtual foi decisiva para atrair atenção internacional e dificultar que o governo controlasse a narrativa.
Especialistas observam que o caráter horizontal da organização, típico da Geração Z, dificultou o trabalho das forças de segurança, que não conseguiram identificar líderes centrais a serem detidos. Em vez de comandos hierárquicos, as ações seguiram uma lógica distribuída: grupos locais tomavam decisões conforme a conjuntura de cada bairro, compartilhando rapidamente estratégias bem-sucedidas por meio de canais seguros.
Repercussão internacional
Governos vizinhos acompanham de perto os desdobramentos no Nepal, país localizado entre Índia e China e dotado de importância estratégica na região dos Himalaias. Até o momento, não houve pronunciamentos oficiais de nações estrangeiras sobre possíveis sanções ou oferta de mediação. Organizações intergovernamentais, contudo, pediram respeito aos direitos humanos e liberação imediata dos detidos durante manifestações pacíficas.
Observadores internacionais, que vinham monitorando eleições locais anteriores, avaliam enviar missões de acompanhamento caso o Parlamento concorde em antecipar o pleito. Enquanto isso, entidades civis pedem garantia de segurança para repórteres, fotógrafos e cinegrafistas que cobrem os eventos, alguns dos quais relatam intimidações e apreensão de equipamentos.
Cenário político futuro
A queda de Oli e de parte do gabinete leva o Nepal a um período de incerteza. A Constituição prevê que, se o Parlamento não conseguir formar governo em determinado prazo, o presidente pode convocar eleições antecipadas. Contudo, a Casa Legislativa encontra-se parcialmente destruída e sem datas definidas para retomar sessões. Partidos tradicionais negociam alianças, mas enfrentam resistência popular que rejeita as mesmas figuras no comando do Estado.
Líderes dos protestos, por sua vez, discutem a formação de um movimento cívico permanente, focado em monitorar ações do próximo governo e pressionar por reformas anticorrupção. Analistas alertam que a falta de experiência política dos jovens pode dificultar a tradução das demandas de rua em propostas legislativas concretas, mas reconhecem que a energia demonstrada tem potencial para remodelar o tabuleiro partidário.
Conclusão provisória
O incêndio no Parlamento e as renúncias no alto escalão evidenciam que o bloqueio às redes sociais foi apenas um catalisador de tensões antigas. Enquanto as ruas seguem ocupadas e a comunicação virtual se restabelece, o Nepal encara desafios de governabilidade, reconstrução institucional e pacificação social. A capacidade do sistema político de responder às exigências de transparência e participação juvenil definirá o rumo do país nos próximos meses.
Fonte: Mistérios do Mundo