Uma equipe internacional coordenada pela astrônoma Marta Sewilo, pesquisadora da University of Maryland e da NASA, identificou pela primeira vez um conjunto de moléculas orgânicas complexas em estado sólido fora da Via Láctea. A descoberta foi realizada com observações do Telescópio Espacial James Webb (JWST) e se concentra na jovem estrela ST6, localizada na Grande Nuvem de Magalhães, a aproximadamente 160 000 anos-luz da Terra. A análise dos dados espectroscópicos revelou a presença de cinco moléculas congeladas em gelo que são consideradas blocos iniciais importantes para a formação de compostos associados à química da vida.
Detecções inéditas no gelo circumestelar
Os pesquisadores identificaram metanol, etanol, formato de metila, acetaldeído e ácido acético nos grãos de gelo que circundam ST6. Entre essas espécies, o ácido acético nunca havia sido observado de forma conclusiva em gelo espacial, enquanto etanol, formato de metila e acetaldeído foram detectados pela primeira vez em gelo extragaláctico. O metanol, já registrado em diferentes regiões da Via Láctea, completa a lista de compostos confirmados no ambiente ao redor da protoestrela.
Essas substâncias pertencem a uma classe de moléculas que, quando submetidas a reações adicionais, podem originar compostos orgânicos ainda mais complexos, incluindo aminoácidos e açúcares. Por esse motivo, a identificação delas em uma galáxia vizinha amplia o entendimento sobre como os ingredientes químicos essenciais à vida se distribuem pelo cosmos.
Condições semelhantes ao universo primitivo
A Grande Nuvem de Magalhães possui apenas cerca de um terço a metade da abundância de elementos pesados presente no Sistema Solar. Além disso, a região onde ST6 se encontra é banhada por radiação ultravioleta mais intensa do que aquela em que estrelas jovens da Via Láctea geralmente se formam. Essas características lembram o ambiente físico-químico do universo em épocas mais remotas, quando a metalicidade média era baixa e a radiação tinha papel dominante na evolução das nuvens de gás e poeira.
Detectar moléculas orgânicas em um meio com essas restrições indica que processos de síntese complexa podem ocorrer mesmo quando a matéria-prima contém poucos elementos além de hidrogênio e hélio. O resultado sugere, portanto, que os precursores da vida podem ter começado a se formar muito antes do que se imaginava e sob uma variedade maior de condições astrofísicas.
Papel decisivo do James Webb
O Telescópio Espacial James Webb, lançado em 2021, foi projetado para operar principalmente no infravermelho, intervalo no qual moléculas vibram e deixam assinaturas distintas em espectros de luz. Ao apontar seus instrumentos para ST6, o observatório registrou padrões de absorção associados aos compostos agora confirmados. A sensibilidade do JWST a pequenos contrastes de intensidade e sua capacidade de separar comprimentos de onda permitiram diferenciar entre espécies químicas semelhantes, algo fundamental para obter a lista detalhada divulgada pela equipe.
Sem o alcance de luz infravermelha profunda e a estabilidade térmica alcançada pelo telescópio, as feições espectrais de etanol, ácido acético e dos outros materiais poderiam permanecer encobertas pelo brilho difuso do pó interestelar ou confundir-se com linhas de absorção de água e outros componentes já conhecidos.
Equipe e metodologia
Sob a liderança de Marta Sewilo, os cientistas reuniram especialistas em formação estelar, química interestelar e análise espectral. Os astrônomos selecionaram ST6 porque a fonte é suficientemente jovem para manter parte do material original de sua nuvem natal e, ao mesmo tempo, apresentar luminosidade capaz de atravessar as camadas de gelo, facilitando a observação. Depois de coletar os dados brutos, os pesquisadores utilizaram modelos de laboratório para comparar padrões de absorção e atribuir cada feição aos compostos específicos agora relatados.
A confirmação dependia ainda de excluir contaminações ou sobreposições com outras moléculas. Para isso, a equipe analisou diferentes faixas de frequências e verificou se as posições e intensidades esperadas coincidiam com a assinatura obtida pelo telescópio. O processo envolveu cálculos de temperatura de grãos de gelo, densidade local de gás e intensidade de radiação, fatores que influenciam a forma como cada molécula absorve luz em diferentes regimes.
Metanol e etanol: álcoois comuns, contexto extraordinário
Metanol e etanol são compostos frequentemente encontrados em diversos ambientes astronômicos dentro da nossa galáxia. A novidade, neste estudo, é a detecção de etanol em gelo além da Via Láctea. Essas moléculas podem servir de base para reações que geram éteres, aldeídos maiores e, em ambientes apropriados, até aminoálcoois, que por sua vez podem formar aminoácidos. Estabelecer que o processo de formação de álcoois acontece em galáxias de baixa metalicidade reforça a hipótese de que a química orgânica básica é ubíqua em nuvens de formação estelar.
Ácido acético: registro conclusivo inédito
O ácido acético representa um marco particular porque, apesar de indícios anteriores, não havia comprovação definitiva de sua presença em gelo cósmico. As bandas de absorção do composto se sobrepõem às da água e de alguns outros ácidos carboxílicos, o que dificulta a diferenciação. Os dados de alta resolução do James Webb permitiram identificar picos que coincidem de forma consistente com o ácido acético, descartando outras possibilidades. Esse resultado amplia o catálogo de moléculas prebioticamente relevantes confirmadas no espaço.
Formato de metila e acetaldeído: primeiras evidências extragalácticas em gelo
A confirmação de formato de metila e acetaldeído em ambiente extragaláctico estabelece novos parâmetros para a diversidade química em sistemas de baixa metalicidade. Ambos os compostos desempenham papel na construção de ésteres e aldeídos mais complexos, além de poderem atuar como intermediários na formação de açúcares e aminoácidos em ambientes astrofísicos. Detectá-los em sua fase sólida demonstra que cadeias de carbonos com grupos funcionais variados podem se formar e permanecer preservadas mesmo em condições radiativamente agressivas.
Imagem: Internet
Implicações para a origem da vida
Embora a presença dessas moléculas não prove a existência de vida nem de processos biológicos, a detecção reforça a ideia de que tijolos químicos essenciais podem surgir cedo na história cósmica. Como ST6 se encontra em uma região com radiação intensa e menos metais, o processo químico em curso ali serve de análogo para épocas em que o universo possuía baixos teores de elementos pesados. Se moléculas como metanol, etanol e ácido acético conseguem emergir nesse cenário, é plausível que nuvens ainda mais primitivas já contivessem os precursores de biomoléculas antes mesmo da formação de galáxias similares à Via Láctea.
Essa compreensão se alinha com teorias segundo as quais compostos orgânicos complexos migrariam, encapsulados em grãos de gelo, para discos protoplanetários, eventualmente contribuindo para a química de superfícies planetárias. A descoberta amplia, assim, o conjunto de evidências de que a base molecular da vida pode ser produzida e distribuída em intervalos temporais e espaciais muito maiores do que se especulava.
Relevância para a astrobiologia e a química interestelar
Os resultados obtidos com ST6 fornecem um laboratório natural para estudos de astrobiologia em ambientes de baixa metalicidade. As observações ajudam a calibrar modelos sobre como radiação ultravioleta e escassez de elementos pesados influenciam a formação de ligações carbono-hidrogênio-oxigênio. Além disso, servem de referência para interpretar dados de futuras missões direcionadas a regiões parecidas, tanto dentro quanto fora da Via Láctea.
Para a química interestelar, a confirmação dessas moléculas em estado sólido impõe novas restrições sobre mecanismos de síntese em superfícies de gelo. As reações de hidrogenação, oxidação e radicalização que ocorrem em grãos sob baixas temperaturas precisam agora explicar a produção de ácido acético e compostos correlatos em um cenário de abundância limitada de carbono, oxigênio e hidrogênio.
Próximos passos da pesquisa
Segundo a equipe, o próximo desafio consiste em determinar quantidades relativas precisas das moléculas identificadas, o que exige modelagens de transferência radiativa mais complexas. Estudos complementares com instrumentos de rádio e submilímetro poderão sondar a fase gasosa nos arredores de ST6, verificando se parte dos compostos é liberada à medida que a protoestrela aquece o ambiente. Comparar as abundâncias entre estado sólido e gasoso ajudará a medir a eficiência com que moléculas pré-biológicas sobrevivem ao processo de formação estelar.
Outra linha de investigação envolve estender a metodologia para um conjunto maior de protoestrelas na Grande Nuvem de Magalhães e, posteriormente, na Pequena Nuvem de Magalhães. Com isso, os astrônomos buscarão padrões comuns ou variações na composição de gelo que possam ser atribuídas a diferenças em idade estelar, densidade da nuvem ou intensidade local de radiação.
Panorama do telescópio e colaboração internacional
O sucesso da observação reforça a importância de missões como o James Webb para a pesquisa de astrobiologia extragaláctica. Operando em órbita no ponto de Lagrange L2 do sistema Sol-Terra, o observatório permanece protegido de variações térmicas e contaminação luminosa, condições que elevam a precisão de seus espectros. A colaboração entre universidades, centros de pesquisa e a NASA demonstra que grandes telescópios espaciais funcionam como plataformas compartilhadas para responder questões sobre a origem dos componentes químicos que possibilitam a vida.
Com base nessa primeira detecção robusta de ácido acético e em confirmações extragalácticas de etanol, formato de metila e acetaldeído, a comunidade científica dispõe agora de evidências diretas de que a síntese de compostos orgânicos complexos acontece além das fronteiras da Via Láctea, mesmo em ambientes considerados hostis. Os resultados abrem caminho para investigações detalhadas sobre quando, onde e como as mesmas rotas químicas atuaram no passado profundo do universo.
Fonte: cmns.umd.edu





















