Investigação dos EUA pode limitar acesso de brasileiros a medicamentos, diz Médicos Sem Fronteiras

Uma investigação comercial aberta pelo Escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos (USTR) contra o Brasil reabriu um debate que envolve propriedade intelectual, política de saúde pública e o futuro do mercado de medicamentos no país. De acordo com a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF), o processo coloca em risco a capacidade da população brasileira de obter remédios a preços acessíveis, ao mesmo tempo em que pressiona o governo a adotar regras mais rígidas do que as exigidas pelos acordos internacionais em vigor.

Origem da disputa

O USTR iniciou a apuração após receber alegações de que o Brasil adotaria práticas discriminatórias ou restritivas contra produtos e serviços norte-americanos. O principal foco são as normas brasileiras de propriedade intelectual, especialmente no segmento farmacêutico. Para Washington, o modelo aplicado em território nacional dificultaria a ampliação dos períodos de proteção de patentes detidas por empresas norte-americanas. Já para a MSF, a iniciativa reflete interesses de grandes companhias do setor, que pretendem prolongar monopólios e, consequentemente, manter preços elevados.

Como funciona o sistema brasileiro de patentes

O Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) é responsável por analisar e conceder patentes no Brasil. Diferentemente de regimes que concedem registros de forma automática ou com avaliações superficiais, o país adota um exame substantivo. Esse procedimento exige a verificação minuciosa de três critérios legais: novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Somente quando todos os requisitos são atendidos é que o pedido é deferido.

O governo dos Estados Unidos argumenta que a demora nesse processo impacta negativamente os prazos de validade das patentes, reduzindo o período no qual a empresa detentora pode explorar o produto com exclusividade. A legislação norte-americana prevê compensações de tempo perdidos durante a análise, algo que não existe na regra brasileira. Na visão de Washington, o Brasil deveria adotar mecanismos de extensão automática quando a decisão do INPI ultrapassar determinado limite temporal.

A MSF, por sua vez, sustenta que o escrutínio detalhado é ferramenta essencial de saúde pública. Quando patentes de baixa qualidade são aprovadas, a concorrência fica restrita, reduzindo-se a entrada de genéricos no mercado. Isso resulta na manutenção de preços altos e limita o acesso de pacientes a tratamentos que salvam vidas. Para a organização humanitária, o atual procedimento brasileiro está alinhado às obrigações multilaterais e não viola nenhum compromisso assumido pelo país.

Efeitos do tempo de exame sobre a competitividade

O período médio de avaliação no INPI tem sido alvo de críticas tanto de empresas nacionais quanto estrangeiras. De um lado, laboratórios multinacionais afirmam que a morosidade prejudica o retorno dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento. De outro, fabricantes de genéricos e organizações civis apontam que uma análise apressada criaria riscos de concessão indevida de patentes secundárias, as chamadas evergreening, que ampliam artificialmente os monopólios além dos 20 anos padrões previstos no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS).

Essas disputas evidenciam o delicado equilíbrio entre incentivar inovação e proteger a saúde pública. Países em desenvolvimento, como o Brasil, dependem de medicamentos a preços acessíveis para suprir programas nacionais de tratamento de doenças crônicas e infecciosas. Caso as proteções sejam prolongadas sem justificativa técnica, o sistema de patentes pode se transformar em barreira de acesso.

Acusações de leniência contra produtos falsificados

Outro ponto destacado pela investigação do USTR é a suposta tolerância do Brasil em relação à entrada de medicamentos falsificados no mercado interno. A narrativa preocupa organizações de saúde que defendem o abastecimento seguro, mas também acende alerta sobre possíveis consequências colaterais. O temor é que critérios antifalsificação excessivamente amplos provoquem apreensões equivocadas de genéricos legítimos em portos e aeroportos.

Segundo a MSF, abordagens que não diferenciam produtos falsificados de genéricos regularizados podem atrasar a distribuição de remédios essenciais ou até levar à sua destruição. Quando remessas são retidas, pacientes ficam vulneráveis à descontinuidade de tratamento. Além disso, o risco jurídico e financeiro afasta fornecedores, restringindo a oferta e elevando custos ao sistema público e à população.

O debate sobre exclusividade de dados

Os Estados Unidos também questionam a legislação brasileira no que se refere à proteção contra uso comercial desleal e divulgação não autorizada de dados de testes apresentados para registro sanitário. A crítica não está relacionada à confidencialidade em si, mas à ausência de um dispositivo conhecido como exclusividade de dados. Esse mecanismo impede órgãos reguladores de aceitarem, por um período determinado, estudos clínicos já submetidos pela empresa pioneira, mesmo quando a patente corresponde ao princípio ativo já expirou.

Para a MSF, essa exigência vai além do TRIPS e cria um monopólio adicional que posterga a entrada de versões genéricas após o fim da patente. Na prática, mesmo que a proteção patentária tenha chegado ao fim, laboratórios genéricos seriam obrigados a repetir ensaios clínicos caros, eticamente controversos e demorados para comprovar novamente a eficácia do fármaco. Esses custos aumentam o preço final e atrasam a disponibilidade ao consumidor.

Consequências para a política de medicamentos genéricos

O Brasil implementa, desde 1999, um programa de medicamentos genéricos que se tornou referência em saúde pública. A estratégia possibilitou a queda de preços e ampliou a oferta de tratamentos para doenças como hipertensão, diabetes e HIV. Especialistas em mercado farmacêutico atribuem parte desse sucesso à legislação de patentes que, embora rigorosa, evita prorrogações injustificadas de exclusividade.

Se as reivindicações do USTR forem aceitas, o país poderá ser pressionado a modificar dispositivos legais ou regulatórios para introduzir prazos adicionais de proteção. Tal medida pode elevar os custos de aquisição de remédios pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e comprometer políticas de distribuição gratuita ou subsidiada. Além disso, a revisão de normas sem amplo debate interno colocaria em xeque a soberania nacional para equilibrar interesses comerciais e direitos fundamentais.

Liderança brasileira em fóruns internacionais

Nas últimas décadas, o Brasil assumiu protagonismo em discussões globais sobre saúde pública e propriedade intelectual. Um marco dessa atuação ocorreu em 2001, quando o país foi um dos articuladores da Declaração de Doha, na Organização Mundial do Comércio (OMC). O documento reafirmou que os acordos de patentes devem ser interpretados de maneira a garantir o direito dos governos de proteger a saúde de suas populações, inclusive por meio de licenças compulsórias ou outras flexibilidades previstas no TRIPS.

A atual investigação americana é vista por observadores como tentativa de desvirtuar esse consenso. Alterar unilateralmente o equilíbrio entre proteção à inovação e acesso a medicamentos pode repercutir em outras nações em desenvolvimento que se inspiram no modelo brasileiro. Por esse motivo, a MSF classifica o processo do USTR como ameaça não apenas à política interna, mas ao precedente jurídico que assegura a adoção de medidas de saúde pública em todo o mundo.

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Imagem: Lucas Rabello

Pressão semelhante a outros países

Além do Brasil, economias emergentes como Índia, China, Malásia e Chile enfrentam questionamentos de Washington pela forma como aplicam as normas de propriedade intelectual. Esses países mantêm políticas destinadas a estimular a produção local de genéricos e biossimilares, reduzir custos e ampliar a cobertura de medicamentos em sistemas públicos.

A possibilidade de retaliações comerciais ou sanções tarifárias torna o ambiente ainda mais complexo. Se os Estados Unidos vincularem barreiras de acesso ao mercado norte-americano ao endurecimento das regras de patentes, governos terão de escolher entre aceitar condições mais duras ou arriscar perdas em exportações. O impasse tem impacto direto na formulação de políticas de saúde e no preço final pago pelos cidadãos.

Próximos passos da investigação

A abertura do caso no USTR inicia um período de consultas, no qual interessados podem apresentar depoimentos, documentos e argumentos técnicos. Ao final, o governo norte-americano pode recomendar negociações bilaterais, estabelecer prazos para mudanças legislativas ou aplicar medidas de retaliação, como aumento de tarifas ou restrições a produtos brasileiros.

No cenário doméstico, especialistas avaliam que o Brasil precisará defender seu arcabouço legal em foros multilaterais e demonstrar que cumpre integralmente o TRIPS. A estratégia inclui destacar o papel do exame substantivo, a importância do programa de genéricos e a necessidade de flexibilidade para proteger a saúde pública. Caso contrário, a pressão pode resultar em ajustes normativos que teriam efeito direto sobre o preço e a disponibilidade de medicamentos no país.

Impacto potencial sobre pacientes

Organizações de pacientes acompanham o desenrolar da disputa com preocupação. Para patologias como câncer, hepatite C e doenças raras, o lançamento de versões genéricas ou biossimilares costuma representar a única alternativa para a redução dos valores cobrados. Manter monopólios prolongados inviabiliza a inclusão de determinados tratamentos na lista de compras do SUS, devido ao orçamento limitado.

Ainda que a investigação americana se concentre em aspectos formais de propriedade intelectual, seus desdobramentos atingem diretamente a população. A experiência de países que adotaram exclusividade de dados ou extensões automáticas de patentes mostra aumento de preços e adiamento da concorrência. Essa combinação pressiona gestores públicos e planos privados, afetando a sustentabilidade do sistema de saúde.

Equilíbrio entre inovação e acesso

O argumento de indústrias farmacêuticas a favor de patentes mais longas é o estímulo financeiro a pesquisas que geram novos tratamentos. Contudo, o desafio para países com grande demanda por medicamentos é encontrar uma fórmula que garanta inovação sem sacrificar o atendimento básico. O modelo de patentes previsto no TRIPS oferece margens para flexibilidades, justamente para equilibrar essas duas dimensões.

No caso brasileiro, a adoção de licenças compulsórias em situações de emergência, a possibilidade de importação paralela e o exame cuidadoso de pedidos são instrumentos de gestão pública. Eventuais mudanças impostas por pressão externa podem restringir o uso dessas ferramentas e reduzir a capacidade de resposta a crises sanitárias futuras.

Cenário internacional e precedentes

Historicamente, ações do USTR influenciaram políticas de propriedade intelectual em diversos países. Em alguns casos, acordos bilaterais resultaram na adoção de cláusulas TRIPS-plus, que ampliam os direitos dos titulares de patentes além do padrão multilateral. Tais disposições incluem prorrogação automática de prazos, exclusividade de dados e bloqueios à revisão de patentes já concedidas.

Críticos desse modelo apontam que a elevação do nível de proteção não se traduz necessariamente em mais pesquisa local ou transferência de tecnologia. Em vez disso, reforça-se a dependência de importações e a concentração de mercado em poucas empresas. Para nações que buscam autonomia produtiva, essa tendência contradiz estratégias de industrialização e desenvolvimento.

Desfecho em aberto

Até o momento, não há prazo definido para a conclusão da investigação norte-americana. O resultado dependerá da capacidade de negociação entre os governos e da mobilização de grupos interessados, como sociedade civil, associações de pacientes, indústria e academia. Observadores ressaltam que o processo terá influência significativa sobre o ritmo de aprovação de medicamentos genéricos no Brasil e, por extensão, sobre os gastos em saúde pública.

Independentemente do desfecho, o caso reforça a importância de políticas nacionales alinhadas às necessidades da população. A forma como o Brasil conduzirá sua defesa poderá consolidar ou enfraquecer um modelo que, nas últimas décadas, permitiu ampliar o acesso a tratamentos essenciais. Para a MSF, está em jogo não apenas a economia de recursos públicos, mas a garantia de que pessoas em todo o território tenham acesso oportuno a remédios de qualidade.

Fonte: Mistérios do Mundo

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