O rover Rosalind Franklin, desenvolvido pela Agência Espacial Europeia (ESA) em parceria com a NASA, é a aposta mais ambiciosa do continente europeu para investigar se Marte já abrigou ou ainda abriga formas de vida. Previsto para ser lançado entre outubro e dezembro de 2028 a partir do Centro Espacial Kennedy, na Flórida, o veículo deverá chegar ao planeta vermelho em 2030, pousar na planície de Oxia Planum e operar por, no mínimo, um ano marciano – cerca de dois anos terrestres. Munido de um laboratório completo a bordo e de uma broca capaz de extrair amostras a até dois metros de profundidade, o rover promete ampliar de forma significativa o conhecimento sobre a história geológica e biológica de Marte.
Uma trajetória marcada por adiamentos e reviravoltas
A missão que hoje recebe o nome da química britânica Rosalind Franklin foi concebida em 2001, dentro do programa ExoMars. O planejamento original previa colaboração entre ESA e Roscosmos, com lançamento em 2018. Problemas técnicos adiaram a partida para 2020 e, depois, para 2022. A invasão russa da Ucrânia em 2022 encerrou a cooperação com a agência russa, deixando o projeto sem módulo de pouso, sistema de propulsão e foguetão.
O risco de cancelamento mobilizou cientistas e governos europeus em busca de alternativas. Em maio de 2024, ESA e NASA firmaram um acordo que resgatou a missão. Coube à NASA fornecer o veículo lançador, unidades de aquecimento radioisotópicas, elementos do sistema de propulsão para o pouso e componentes adicionais do instrumento MOMA (Mars Organic Molecule Analyzer). O compromisso norte-americano assegurou novo cronograma e integrou tecnologia já empregada em outras missões, como o sistema de navegação autônoma e algoritmos de aprendizado de máquina para análise de amostras.
Oxia Planum: laboratório natural de quase quatro bilhões de anos
O pouso está programado para Oxia Planum, planície de 200 quilômetros de largura e idade estimada em 3,9 bilhões de anos. Estudos orbitais identificaram naquele setor a maior exposição contínua de rochas ricas em argila em Marte. Esses minerais formaram-se na presença de água líquida e são reconhecidos por preservar moléculas orgânicas por longos períodos.
Duas pesquisas recentes reforçaram o potencial científico da região. A primeira mapeou 258 quedas de rochas que expuseram material subsuperficial antes protegido da radiação cósmica. A segunda indicou que parte das argilas ali encontradas pode ter se originado em áreas distantes e sido transportada por inundações há mais de 3,5 bilhões de anos, ampliando a diversidade química disponível para estudo. Esses processos sugerem um ambiente capaz de reter biossinais antigos com menor degradação.
Perfuração profunda: diferencial inédito em Marte
No centro da estratégia científica está a capacidade de perfurar até dois metros abaixo do terreno. A ausência de magnetosfera deixa a superfície marciana exposta a radiação ionizante que destrói compostos orgânicos. Ao alcançar camadas menos afetadas, o rover aumenta a probabilidade de encontrar biomarcadores preservados.
O sistema de perfuração reúne três hastes que se conectam para formar uma coluna metálica rígida. Durante o avanço, o espectrômetro infravermelho Ma_MISS, integrado à broca, analisa as paredes do furo em tempo real, permitindo caracterizar a mineralogia antes mesmo de a amostra chegar ao laboratório interno. A operação, totalmente automatizada, foi testada em ambiente controlado no Mars Terrain Simulator, em Turim. Lá, um modelo idêntico do veículo perfurou 1,7 metro em solo compactado e inclinou-se sete graus, simulando condições fora da verticalidade ideal.
Concluída a perfuração, um obturador prende o cilindro de regolito para evitar perda de material. A amostra sobe pelo mastro, é depositada numa gaveta frontal, triturada e distribuída entre fornos e reservatórios selados para análises químicas e mineralógicas detalhadas.
Laboratório Pasteur: 26 quilos de instrumentação de ponta
O conjunto científico, chamado Pasteur Payload, abriga quatro instrumentos principais, além de sensores auxiliares:
PanCam – Três câmeras produzem imagens estereoscópicas em multiespectral e fotografias de alta resolução. O sistema gera mapas digitais do terreno, ajuda na navegação e busca indícios morfológicos de atividade biológica passada.
MOMA – O analisador de moléculas orgânicas usa técnicas de cromatografia gasosa e espectrometria de massas para detectar compostos complexos que possam ser de origem biológica. Algoritmos de aprendizado de máquina aceleram a interpretação dos dados, permitindo decisões quase em tempo real sobre novos alvos.
Life Marker Chip – Dispositivo microfluídico que emprega anticorpos específicos para reconhecer moléculas associadas a organismos. É o único instrumento desenhado para indicar, de forma direta, a presença atual de atividade biológica, caso existam micro-organismos vivos no entorno.
Raman Laser Spectrometer (RLS) – Laser de comprimento de onda visível que identifica a composição mineral e possíveis biomoléculas preservadas em inclusões de rochas. Estudos demonstraram sua eficiência em reconhecer sinais biológicos após exposição prolongada ao espaço.
Tecnologia europeia no pouso e na locomoção
A Airbus Defence and Space, no Reino Unido, desenvolveu a plataforma de pouso que substitui o módulo russo descartado. Dotada de motores de descida próprios, a estrutura usará componentes semelhantes aos empregados no pouso do rover Perseverance, ajustados às exigências da ESA. O desenho inclui rampas em cada extremidade. Caso uma fique obstruída, o rover realizará manobra em U e sairá pela rampa oposta.
Durante o cruzeiro e a operação de superfície, as temperaturas em Marte podem recuar a –130 °C. Para manter sistemas vitais acima do limite de congelamento, o veículo contará com painéis solares e com unidades de aquecimento radioisotópico que utilizam amerício-241, primeira aplicação espacial desse elemento. Além de aquecer eletrônicos e baterias, o amerício garante autonomia durante tempestades de poeira que reduzem a incidência solar.
A navegação autônoma, necessária devido ao atraso de até 45 minutos na comunicação Terra–Marte, foi otimizada para percorrer entre 50 e 100 metros por dia marciano. Câmeras, sensores de obstáculo e o processamento de bordo criam mapas em três dimensões, possibilitando trajetórias seguras sem supervisão constante dos controladores em solo.
Colaboração transatlântica consolida recursos cruciais
O acordo ESA–NASA engloba responsabilidades bem definidas. A agência europeia coordena o rover, parte da carga científica, a plataforma de pouso e o controle operacional em solo. A NASA fornece o lançador, componentes de navegação de entrada, descida e pouso, unidades radioisotópicas, além de participação no MOMA e em algoritmos de análise de dados.

Imagem: Internet
No campo industrial, o contrato de 150 milhões de libras para o desenvolvimento do sistema de pouso impulsiona a cadeia espacial britânica. Segundo o governo do Reino Unido, a participação fortalece competências internas e aumenta a visibilidade do país em projetos de alta complexidade.
Metas científicas e integração com outras missões
A principal meta é responder se Marte já sustentou vida. O rover investigará depósitos sedimentares antigos, avaliará variações ambientais e medirá a presença de moléculas orgânicas complexas. Os dados complementarão os resultados do rover Perseverance, que coleta amostras superficiais para futura devolução à Terra, enquanto Rosalind Franklin examinará in situ material subterrâneo mais protegido.
Os resultados também servirão de referência para a campanha Mars Sample Return, atualmente em estudo pela NASA e pela ESA. Ao comparar análises feitas em solo marciano com aferições laboratoriais na Terra, cientistas poderão calibrar instrumentos, validar métodos de detecção de biossinais e elaborar protocolos para futuras explorações planetárias.
Cronograma até 2030
Após a janela de lançamento entre outubro e dezembro de 2028, a nave deverá viajar por aproximadamente 18 meses. A chegada está agendada para 2030, fora do período de tempestades globais de poeira, que prejudica a descida. A fase de comissionamento envolverá testes de sistemas, abertura das rampas e deslocamento inicial sobre o terreno. Somente depois o rover começará as perfurações no local primário definido a partir de imagens orbitais e de dados coletados durante a descida.
Ao longo de pelo menos 687 dias terrestres, a equipe pretende realizar dezenas de perfurações, análises químicas e levantamentos panorâmicos. A taxa de deslocamento diária dará margem para visitar afloramentos expostos por quedas de rochas e planícies argilosas depositadas por antigas inundações.
Desafios de engenharia permanecem elevados
Apesar das validações em solo, o pouso em Marte continua a ser uma das manobras mais arriscadas da exploração espacial. A atmosfera rarefeita oferece pouco atrito para desaceleração e, ao mesmo tempo, gera calor intenso na fase de entrada. A sequência de paraquedas, frenagem por retro-foguetes e liberação do rover exige coordenação milimétrica, executada de forma autônoma e sem possibilidade de intervenção em tempo real. Qualquer falha poderá comprometer anos de trabalho e bilhões de euros.
Outro risco é a abrasão da broca em rochas inesperadamente duras. Ensaios mostraram bom desempenho contra basaltos compactos, mas a heterogeneidade geológica de Oxia Planum ainda reserva surpresas. O sistema inclui sensores de torque e vibração que ajustam a força aplicada e interrompem a perfuração caso os parâmetros ultrapassem limites seguros.
Potenciais impactos científicos
Se forem encontrados compostos orgânicos complexos ou indícios morfológicos de micro-fósseis, a missão poderá redefinir o entendimento da origem da vida no Sistema Solar. A confirmação de que a biologia não é exclusiva da Terra ampliaria a perspectiva de organismos em outros corpos, como Europa, Encelado e exoplanetas com características semelhantes.
Mesmo na ausência de biossinais, a caracterização detalhada de minerais, a reconstrução do histórico hidrológico de Oxia Planum e a validação de tecnologias de perfuração profunda fornecerão instrumentos para futuras missões tripuladas. Conhecer a distribuição de argilas, sais e compostos voláteis ajudará na seleção de locais seguros para pouso humano e na extração de recursos in situ para sobrevivência a longo prazo.
Próximos passos
Até 2026, a ESA deve concluir a integração final do rover, realizar testes de vibração, temperatura, vácuo e compatibilidade eletromagnética. Paralelamente, o JPL, da NASA, avançará na produção do sistema de propulsão para pouso e na qualificação das unidades radioisotópicas. Em 2027, a missão passará por ensaios de contagem regressiva simulada e, se aprovada em todas as revisões, será enviada à Flórida para o lançamento.
À medida que a data de partida se aproxima, universidades europeias e norte-americanas já treinam equipes de ciência de missão, definindo protocolos de seleção de alvos, cadência de perfuração e prioridades de análise. A capacidade de revezamento entre centros de controle garantirá cobertura 24 h e resposta rápida a resultados inesperados.
Um marco para a exploração planetária europeia
O sucesso do Rosalind Franklin representará a primeira operação europeia de perfuração profunda, a validação de um laboratório móvel completamente autônomo em Marte e a demonstração de pouso controlado com tecnologia do continente. Esses elementos formam a base para missões futuras, inclusive para locais ainda mais desafiadores, como as luas geladas de Júpiter e Saturno.
Independentemente dos resultados sobre a existência de vida, a missão consolidará a participação europeia na linha de frente da exploração interplanetária, estabelecerá novos parâmetros de cooperação internacional e incentivará avanços em robótica, ciência de materiais e inteligência artificial aplicados ao espaço.
Fonte: Astrobiology